Vivemos sem tempo: quando a pressa se transforma em sintoma

Sensação constante de urgência, dificuldade de parar e o esgotamento como modo de vida. Para a psicanalista Camila Camaratta, a falta de tempo é mais do que uma queixa contemporânea — é sintoma de um mal-estar psíquico coletivo que revela o distanciamento de si mesmo.

“Não tenho tempo para nada.” A frase, repetida diariamente por milhões de pessoas, tornou-se refrão diário e que não causa mais impacto em um mundo que nunca desacelera. Entre notificações, reuniões e compromissos sobrepostos, a sensação de que os dias são curtos demais deixou de ser exceção e passou a ser regra. Mas o que se esconde por trás dessa pressa que parece não ter fim?

De acordo com a pesquisa Ipsos Global Advisor (2024), 78% dos brasileiros relatam sentir que os dias estão cada vez mais curtos, e 64% têm dificuldades em equilibrar vida pessoal e profissional. A Organização Mundial da Saúde confirma: o Brasil é o país mais ansioso do mundo, com 9,3% da população adulta afetada por transtornos de ansiedade — o dobro da média global.

Para a psicóloga e psicanalista Camila Camaratta, a sensação de falta de tempo não se resume à sobrecarga de compromissos. “É um sintoma emocional. A mente, sem pausas, entra em estado de defesa. A pressa se torna um escudo contra o vazio, o silêncio e muitas vezes, contra sentimentos que não conseguimos elaborar”, afirma.

A pressa como defesa psíquica

Na psicanálise, sintomas como insônia, irritabilidade e aceleração mental podem ser expressões de conflitos que precisam ser escutados e compreendidos. O excesso de tarefas e estímulos externos muitas vezes servem para evitar o contato com emoções difíceis. “A aceleração sem reflexão pode mascarar dores profundas: lutos não elaborados, culpas antigas, desejos recalcados”, diz Camila. “O tempo que falta pode ser, na verdade, o espaço interno que está comprimido.”

Essa percepção encontra respaldo em estudos da Associação Americana de Psicologia (APA), que relacionam o excesso de multitarefa e a falta de descanso real ao aumento de sintomas depressivos e de ansiedade generalizada. Cada nova troca de atenção — entre um e-mail e um story, uma planilha e uma mensagem — gera picos de estresse que mantêm o sistema nervoso em alerta contínuo.

A ilusão da produtividade

Vivemos numa sociedade que transformou a produtividade em identidade. Um relatório da Deloitte Human Capital Trends (2023) revelou que 59% dos trabalhadores brasileiros relatam esgotamento e 48% sentem culpa ao descansar. “Muitas pessoas só se sentem tendo valor quando estão ocupadas. O tempo virou uma moeda de validação social”, analisa Camila.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, autor de A Sociedade do Cansaço, aponta esse fenômeno com clareza: “A autoexploração é mais eficiente que a exploração por outros, porque se disfarça de liberdade.” A liberdade de fazer tudo, o tempo todo, com todas as ferramentas disponíveis, transformou o sujeito em seu próprio algoz — sempre ativo e permanentemente esgotado.

Tempo cronológico x tempo psíquico

A psicanálise diferencia o tempo marcado pelo relógio — cronológico, linear — do tempo interno, subjetivo e simbólico. “É possível viver 18 horas por dia cumprindo tarefas e, ainda assim, sentir que nada de essencial aconteceu”, diz Camila. “Quando o sujeito se aliena de si, o tempo escorre. E o vazio permanece.”

A clínica mostra que o tempo psíquico não se impõe — ele precisa de espaço, de silêncio e de simbolização para existir. “Sem tempo” não é apenas uma constatação objetiva — é um modo de defesa frente ao encontro com o inconsciente.

O psicanalista inglês Donald Winnicott dizia que a capacidade de estar só — em segurança — é uma conquista emocional. Em um mundo que glorifica a pressa, cultivar um espaço psíquico onde o sujeito possa simplesmente Ser, sem distrações ou expectativas, é quase revolucionário. “Mas isso pode gerar contato com angústias que a velocidade tenta silenciar”, aponta Camila.

A hiperconectividade como forma de alienação do desejo

Em muitos atendimentos clínicos, o relato “não tenho tempo nem para a terapia” surge como uma queixa prática, mas revela algo mais profundo: uma recusa inconsciente de contato com o próprio desejo. A hiperatividade cotidiana, alimentada por uma hiperconectividade constante — redes sociais, notificações, estímulos infinitos — serve, muitas vezes, como um dispositivo de alienação subjetiva.

“Vivemos tão conectados ao mundo exterior que perdemos a escuta interna. É como se o barulho constante nos poupasse de nos  depararmos com o que realmente queremos”, analisa Camila Camaratta. Nesse contexto, a tecnologia não é apenas um instrumento neutro de produtividade, mas uma estratégia de afastamento psíquico. Ela ajuda a manter o sujeito distraído de si mesmo, impossibilitando o encontro com perguntas fundamentais: O que eu desejo? O que me move? O que me paralisa?

A alienação, nesse sentido, não é apenas um fenômeno social — é também um deslocamento psíquico. “Estar sempre ocupado, disponível e conectado pode funcionar como uma barreira para evitar o contato com aquilo que realmente se deseja. É mais fácil se perder no excesso do que sustentar a responsabilidade de que se pode fazer escolhas”, afirma Camila. Reaproximar-se do próprio desejo exige presença, escuta e disposição para refletir sobre o que de fato faz sentido — e o que apenas preenche o tempo.

Uma saída possível

Talvez a solução não esteja em encaixar mais tarefas em menos tempo, mas em criar pausas reais que permitam a escuta de si. Recuperar o direito ao ócio criativo, ao não fazer nada, ao devaneio — esse tempo aparentemente “inútil”, mas que também pode ser lúdico são talvez, os únicos momentos onde podemos expressar toda a nossa personalidade.

“Reorganizar a relação com o tempo é, acima de tudo, um processo de autoconhecimento”, diz Camila. “Não se trata de desenvolver  mais técnicas de produtividade, mas de refletir sobre o que realmente precisa e faz sentido estar na agenda e fazer parte da sua vida. Às vezes, a falta de tempo é, na verdade, excesso de ruído — interno e externo.”

Repensar nossa relação com o tempo é também um gesto de resistência subjetiva. Em um mundo que exige pressa, desacelerar pode ser um ato radical de cuidado.

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